quarta-feira, 7 de outubro de 2009

foucault muito além do poder



No tipo de discurso, a fronte do homem, que bem pode ser uma menininha.

Pensei nessa foto como uma herança, e, por isso, um dom.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

adorno e sua minima



"Wer Keine Heimat mehr hat,
dem wird wohl gar das Schreiben zum Wohnen."


[A quem não resta nenhuma casa,
a escritura torna-se um lugar para se habitar.]
Theodor W. Adorno

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

escrever além de poder



Roland Barthes: “nunca posso falar senão recolhendo aquilo que se arrasta na língua”.

Sempre me inquieta essa afirmativa de Barthes, mas aos joelhos da escritura, na permissão doada pela diferença da linguagem, dispo meu texto das máscaras e coibo, assim, toda reição insatisfeita de seu lugar. O local da escritura é o alhures da incorporação do sujeito no gozo, como metáfora. Dessa forma, além da servidão, estamos aquém da totalidade e do Absoluto. Não intento uma dialética da escritura, por ser isso já uma quebra do enunciável pela incerteza, por essa intimidade necessária com as palavras. A história se arrasta na língua, mas os rastros descartam a possibilidade de grafo direto, interno e servil. Estancar-se no rastro deixa se escrever como subtração da razão política, para se pôr novamente em guerra (pólemos) contra um gregarismo assertivo. Preciso antes de um deslocar-se, destopicalizar, muito aquém de uma utopia. Destopicamente, o texto poético é aquele que sobrevive na ação de um sujeito, em prática com sua escritura, sua atualização e encruzilhada. Deixa assim assinado: "So thou, being rich in Will, add to thy Will / One will of mine, to make thy large Will more: / Let no unkind, no fair beseechers kill; / Think all but one, and me in that one Will." O agitador de cenas (shake-scene, como propôs Robert Greene) sabia bem fazer arder desejosamente seu nome, no cruzar da língua e do arrastRar de sua escritura.

domingo, 13 de setembro de 2009

obscura claridade de Darwich


"A origem da poesia é sem dúvida uma só: a identidade do homem, desde o passado do seu exílio até ao seu presente exilado.

A poesia nasceu dos primeiros assombros perante a vida, quando a humanidade nascente se interrogou sobre os primeiros mistérios da existência. Foi assim que o universal se tornou, desde as origens, local.

Nesta viagem comum a todos, entre o ser e o universo, nesta viagem feita de uma multiplicidade de línguas, de lugares e níveis de evolução, a experiência poética da humanidade unifica-se e alcança uma universalidade liberta do domínio da 'metrópole' e da submissão das 'províncias'.

(...)

Que significa o fato de eu dizer que a minha poesia vem dum país no qual a relação entre o tempo e o lugar se rompeu, duma pátria em que as crianças se transformaram em fantasmas?

É só uma maneira de dizer as dificuldades da modernidade árabe em marcha, da tribo cujas tendas se volatilizaram em direção à cidade que ainda não nasceu.

A obscuridade não é o objetivo da poesia. Ela nasce, porém, da tensão entre o movimento do poema e o pensamento que o poema põe em movimento, da tensão entre o seu estado de prosa e o seu estado de ritmo. E essa parte obscura, comparável às evocações das sombras, é uma das formas do combate entre a língua poética e a realidade que a poesia, na busca das sua essência, já não se contenta em descrever. Talvez essa parte obscura seja precisamente o espaço aberto diante do leitor que, liberto duma mensagem definitiva, dotado da capacidade de ler e interpretar, possa então dar ao poema uma segunda vida."


Mahmoud Darwich

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

I wander with Whit man


Há um verso de Whitman que diz, celebrando o si mesmo: "The sound of the belched words of my voice... words loosed to the eddies of the wind". Nesse som ameno-amaro, deixado perdido, toda compreensão do poema pode ser deixada por terra, em uma falange de possibilidades e respiros. Como uma sinuosidade, o poema se desloca entre as batentes e oferece um primeiro sopro das origens. Nada é posto aqui em termos, há apenas pronúncia, de fios. Entretecidos entre o devir e o deixar-se na insignificância dos "milagres". Assim, cada parte da palavra é um aroma conduzindo o equilíbrio e uma sentença. O que se deixa sabido? Desperto, entre riachos, o poeta oferece-se como bote e sombra, como um terço da prova, da espera. Talvez poderia pensar na Stimmung da lírica (ou aquela de Stockhausen!): harmonia e hora homônima. O som arrotado do mim, oblíquo.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

bibliotecas conjecturadas (7): "Íon"


"É o que me disponho a fazer, Ião, para explicar-te o que me parece ser a causa do que dizes. O dom de falares com facilidade de Homero, conforme concluí há pouco, nao é efeito da arte, porém resulta de uma força divina que te agita, semelhante à força da pedra que Eurípides denomia magnética e que é mais conhecida como pedra de Héracles. Porque essa pedra não somente tem o poder de atrair anéis de ferro, como comunica a todos eles a mesma propriedade, deixando-os capazes de atuar como a própria pedra e de atrair outros anéis, a ponto de, por vezes, formar-se uma cadeia longa de anéis e de pedaços de ferro, pendentes uns dos outros; e todos tiram essa força da pedra. Do mesmo modo, as Musas deixam os homens inspirados, comunicando-se o entusiasmo destes a outras pessoas, que passam a formar cadeias de inspirados. Porque os verdadeiros poetas, os criadores das antigas epopeias, não compuseram seus belos poemas como técnicos, porém como inspirados e possuídos, o mesmo acontecendo com os bons poetas líricos. Iguais nesse particular aos coribantes, que só dançam quando estão fora do juízo, do mesmo modo os poetas líricos ficam fora de si próprios ao comporem seus poemas; quando saturados de harmonia e de ritmo, mostram-se tomados de furor igual ao das bacantes, que só no estado de embriaguez característica colhem dos rios leite e mel, deixando de fazê-lo quando recuperam o juízo. O mesmo se dá com a alma do poeta lírico, como eles próprios relatam. Dizem-nos os poetas, justamente, que é de certas fontes de mel dos jardins e vergéis das Musas que eles nos trazem suas canções, tal como abelas, adejando daqui para ali do mesmo modo que elas. E só dizem a verdade. Porque o poeta é um ser alado e sagrado, todo leveza, e somente capaz de compor quando saturado do deus e fora do juízo, e no ponto, até, em que perde de todo o senso."

(Platão)

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Ler Platão é ser incitado à revolta. Em um primeiro plano, tudo o que diz ironicamente Sócrates pode ser considerado como verdade filosófica, mas, sendo irônico o discurso, decorre daí todo o desmoronamento do saber aquém do poético. Coloca-nos na revolta por isso, estamos fora também - como o rapsodo Íon - do uso diário com a linguagem. Ponho-me em crise com a linguagem, pois não mais sei se é irônico o dizer do homem - uma busca intransitiva pela negação -, se é divino falar no homem - e assim, seríamos transporte, metáfora e analogia de uma outra metafísica -, ou ainda se é humana a afirmação do poético. Platão nos coloca, em dialogia, o problema de onde habita a identidade imantada do homem no poético. Dessa forma, toda leitura de diálogo deve conceber que há um deslocamento que atinge o ouvinte e o produtor. Nesse deslocar-se os sentidos são expostos à prova e colocados em estado de perda, necessária, à ação do discurso em si, no cerne do convívio. Desloca-se para trazer o intermédio da habitação, fora da técnica, dentro da técnica. Assim, Platão revela a revolta do sentido e do sentimento, justo naquilo que o discurso poemático de seus diálogos pode, ele também, nos conduzir a uma perda do juízo, pela imaginação e ficcionalidade.

domingo, 23 de agosto de 2009

bibliotecas conjecturadas (6): "L'espace littéraire"


"Escrever é ser atraído para fora do vivido, do mundo, em direção à Eurídice, aos infernos – espaço da escritura. Orfeu se volta para Eurídice, pois não voltar-se seria trair uma experiência simultaneamente essencial e arruinadora da obra, experiência onde se atinge o ponto extremo, o extremo risco, exigência paradoxalmente impossível da obra. A experiência é experiência da escritura, busca impossível da origem e da morte. É experiência da atração da origem: o desobrar; e impossibilidade de “olhar” a origem: o obrar."

(Maurice Blanchot)

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Ler Maurice Blanchot é escrever-se no não-findo da conversação. O texto blanchotiano exige o direito de morte e de ausência na distância. Desse modo, toda experiência literária é órfica por ser no nível da impossibilidade, daquilo que se marca pela falta na origem. O silêncio silencia - se pudermos parodiar Heidegger quando diz que a "coisa coisa" - e nessa ação há apenas o intransitivo da sensação da escrita. Calar-se é a forma de por a escrita em circulação, aliás, é a circulação que define a escritura como movimento do pôr em obra a obra - o "obrar", necessariamente físico e constitutivo. Assim, toda obra nasce da ruína. Uma ruína previamente estabelecida e esperada. Os passos lentos e leves de Eurídice demonstram a violação e inscrevem a escrita como violação essencial do homem. Nesse sentido, Blanchot nos impõe violar-nos - no sentido mais sexual possível - na enunciação da escrita de si, toda escrita como esse si.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

bibliotecas conjecturadas (5): "Hamlet"


"Que camponês canalha e baixo eu sou!
Não é monstruoso que esse ator consiga
Em fantasia, em sonho de paixão,
Forçar sua alma a assim obedecer-lhe
A ponto de seu rosto ficar pálido,
Ter lágrimas nos olhos, o ar desfeito,
A voz cortada, e todo o desempenho
E as expressões de acordo com o papel?
E tudo isso por nada! Só por Hécuba!
Que lhe interessa Hécuba, ou ele a ela,
Para que chore assim? E que faria
Se tivesse os motivos de paixão
Que eu tenho? Inundaria com seu pranto
O palco, e rasgaria com palavras
Horríveis os ouvidos da assistência;
Poria louco o réu, medroso o livre,
Conturbado o ignorante, e estuporados
Os sentidos da vista e dos ouvidos...
Mas eu, canalha inerte, alma de lodo,
Arrasto-me, alquebrado, um João-de-Sonho,
Nada digo, porquanto não me enfronho
Em minha causa; causa que é de um rei
A cujo patrimônio e à própria vida
Foi imposta uma trágica derrota.
Sou acaso um covarde? Quem me chama
De vilão? Quem me parte o crânio e arranca
As barbas, pra em rosto m'as lançar?
Quem me torce o nariz? Quem me desmente
E jura que há de pôr-me pela goela,
Atingindo os pulmões, o que é mentira?
Quem me faz isso? Ai, bem o mereço:
Não o devia ser, mas sou um fraco;
Falta-me o fel que amarga as opressões,
Senão, eu já teria alimentado
Os milhafres do céu co'os restos podres
Desse vilão lascivo ensangüentado!
Vilão cruel, traidor incestuoso!
Oh, vingança!
Ah, que jumento eu sou! Isso é decente,
Que eu, filho de um pai assassinado,
Chamado a agir por anjos e demônios,
Qual meretriz sacie com palavras
Meu coração, co'as pragas das rameiras
E das escravas!
Arre, que asco! Mas ergue-te, meu cérebro:
Ouvi dizer que quando os malfeitores
Assistem a uma peça que os imita,
Sentem na alma a perfeição da cena
E confessam de súbito os seus erros.
Pois o crime de morte, sem ter língua,
Falará com o milagre de outra voz.
Esses atores, diante de meu tio,
Repetirão a morte de meu pai;
Vou vigiar-lhe o olhar, sondá-lo ao vivo;
Se trastejar, eu sei o que farei.
O fantasma talvez seja um demônio,
Pois o demônio assume aspectos vários
E sabe seduzir; ele aproveita
Esta melancolia e esta fraqueza,
Já que domina espíritos assim,
Para levar-me à danação. Preciso
Encontrar provas menos duvidosas.
É com a peça que penetrarei
O segredo mais íntimo do rei."

(William Shakespeare)

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Ler Shakespeare é participar do íntimo tenso na conversa. Assim, o lodo convertido, quintessência de nada. Vai-se ao teatro, moldam-se as máscaras tesas. Um alívio de estar apenas lendo e poder fingir que não afeta. Saciando, essa puta triste, de palavras, o corpo se deixa nostálgico ao fado preso do desejo impossível, da falta original. O que me imita, de súbito, nessa morada de tempos? Ser Hamlet ou Falstaff ou Ofélia. Às vezes todos de uma só vez tentando desvendar o que é essa matéria do sonho que me marca, assujeita. Apenas olhar a causa, fazer pintar aquilo que torna e faz-acontecer. Shakespeare se vinga de cada desatento, molhando nossos olhos com o sangue das mãos dos Macbeths. Silencio, lendo-o.

bibliotecas conjecturadas (4): "Der Ursprung des Kunstwerk"


“τέχνη não significa nem manufatura, nem arte e, finalmente, nem a técnica no sentido dos dias de hoje: ela não quer dizer, nunca, um tipo de realização prática. A palavra τέχνη nomeia muito mais um modo do saber [Wissen]. Saber significa: ter visto, no mais amplo sentido de ver, quer dizer: o perceber do presente como um tal. A essência do saber repousa, para o pensamento grego, na αλήθεια, ou seja, no desencobrimento [Entbergung] do ente. Ela traz e acompanha cada comportamento para com o ente. A τέχνη, como experimentada no saber grego, é um trazer-à-frente do ente, na medida em que traz o presente como um tal desde o encobrimento, especialmente, ao não-encobrimento de seu aspecto; τέχνη nunca significa a atividade de um fazer”


(Martin Heidegger)

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Ler Heidegger é caminhar ao repouso da palavra enquanto ela é apenas já uma temporalidade. Assim, sua terra não está além do instante em que o fazer-acontecer do nome, símbolo, se intenta contra a coisa e a coloca como problema primeiro. O caminho trilhado na Floresta Negra de Heidegger é antes de tudo um saber da técnica no qual a arte se consome e se propõe. Desse modo, todo movimento para um repouso é delimitado por suas condensações do existente, do à mão. Se todo pensamento é à mão, feito por elas, a arte coloca-se como um saber de outro nível. A permanência é sua morada onde a portada é povoada de bustos para corvos pousarem. Como em festa, o dia do clarão da arte é uma forma de enteléquia que possibilita a permanência e presentifica a angústia da coisidade da coisa. Somente por seu entrechoque com o esquecimento, com o olvido, é que a verdade da arte se manifesta como um velar novamente, um revelar-se a si por si. Assim, Heidegger nos coloca no dilema da palavra visiva, da contemplação que produz o poetizável do utensílio, dá o existente do objeto. Ao não-encobrir a leitura, ler Heidegger é fazer-se como origem, na pergunta sobre a origem essencial.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

bibliotecas conjecturadas (3): "lituraterre"


“Le ruissellement est bouquet du trait premier et de ce qui l'efface. Je l'ai dit: c'est de leur conjonction qu'il se fait sujet, mais de ce que s'y marquent deux temps. Il y faut donc que s'y distingue la rature.
Rature d'aucune trace qui soit d'avant, c'est ce qui fait terre du littoral.
Litura pure, c'est le littéral. La produire, c'est reproduire cette moitié sans paire dont le sujet subsiste. Tel est l'exploit de la calligraphie. Essayez de faire cette barre horizontale qui se trace de gauche à droite pour figurer d'un trait l'un unaire comme caractère, vous mettrez longtemps à trouver de quel appui elle s'attaque, de quel suspens elle s'arrête. À vrai dire, c'est sans espoir pour un occidenté.
Il y faut un train qui ne s'attrape qu'à se détacher de quoi que ce soit qui vous raye.
Entre centre et absence, entre savoir et jouissance, il y a littoral qui ne vire au littéral qu'à ce que ce virage, vous puissiez le prendre le même à tout instant. C'est de ça seulement que vous pouvez vous tenir pour agent qui le soutienne.
Ce qui se révèle de ma vision du ruissellement, à ce qu'y domine la rature, c'est qu'à se produire d'entre les nuages, elle se conjugue à sa source, que c'est bien aux nuées qu'Aristophane me hèle de trouver ce qu'il en est du signifiant: soit le semblant, par excellence, si c'est de sa rupture qu'en pleut, effet à ce qu'il s'en précipite, ce qui y était matière en suspension.”


["O escoamento é a finalização do traço primário e daquilo que o apaga. Eu o disse: é pela conjunção deles que ele se faz sujeito, mas por aí se marcarem dois tempos. É preciso, pois, que se distinga nisso a rasura.
Rasura de um traço qualquer que tenha existido antes, é isso que do litoral faz terra. Litura pura é o literal. Produzi-la é reproduzir essa metade ímpar com que o sujeito subsiste. É essa a façanha da caligrafia. Tentem fazer essa barra horizontal que é traçada da esquerda para a direita, para representar com um traço o um unário como caractere, e vocês levarão muito tempo para descobrir com que apoio ela se imprime, com que suspensão ela se detém. A bem da verdade, não há chance para um ocidentalizado.
É preciso uma aptidão que só consegue quem se desliga de seja lá o que for que o entrava.
Entre centro e ausência, entre saber e gozo, existe litoral que só vira literal quando, essa virada, vocês podem tomá-la, a mesma, a todo instante. É somente a partir daí que podem tomar-se pelo agente que a sustenta.
O que se revela por minha visão do escoamento, no que nele a rasura predomina, é que, ao se produzir por entre as nuvens, ela se conjuga com sua fonte, pois que é justamente nas nuvens que Aristófanes me conclama a descobrir o que acontece com o significante: ou seja, o semblante por excelência, se é de sua ruptura que chove, efeito em que isso se precipita, o que era matéria em suspensão."]

(Jacques Lacan)


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Ler Jacques Lacan é suspender o saber para um litoral. Ir ao encontro da areia, como quem se despe de sua argamassa de passados. Na rasura, o texto constrói-se adentrado, fremindo o exposto do sujeito. Assim, escoa a água dessa nuvem - Nuvoletta - que é já o fluxo do traço caligrafado. A viagem de Lacan ao extremo oriente o coloca no problema do semblante e, com isso, onde há o discurso para além do semblante. A escuta silenciosa - muito mais adentro do analista - converte-se em instrumento interpretável. O que se suspende é esse litora que é já a carta/letra (letter), mas também o lixo (litter), o postergar da entrega, a perda na diferença do envio. No traço/rastro primeiro a significação torna-se traçado desse horizonte da inscrição, do sujeito em sua metáfora. Deixar-se ao saber do inconsciente é revelar esse saber não-sabido, uma razão na incognoscibilidade. Sem íncolas, à deriva da escrita. Se não rio é que me mantenho à ria. São dos braços a profundeza do raso literal. Daqui prostram-se aqueles que ao lerem, o ilegível, escrevem mais além.

transitoriedade e beleza


"A propensão de tudo que é belo e perfeito à decadência, pode, como sabemos, dar margem a dois impulsos diferentes na mente. Um leva ao penoso desalento sentido pelo jovem poeta, ao passo que o outro conduz à rebelião contra o fato consumado. Não! É impossível que toda essa beleza da Natureza e da Arte, do mundo de nossas sensações e do mundo externo, realmente venha a se desfazer em nada. Seria por demais insensato, por demais pretensioso acreditar nisso. De uma maneira ou de outra essa beleza deve ser capaz de persistir e de escapar a todos os poderes de destruição.
Mas essa exigência de imortalidade, por ser tão obviamente um produto dos nossos desejos, não pode reivindicar seu direito à realidade; o que é penoso pode, não obstante, ser verdadeiro. Não vi como discutir a transitoriedade de todas as coisas, nem pude insistir numa exceção em favor do que é belo e perfeito. Não deixei, porém, de discutir o ponto de vista pessimista do poeta de que a transitoriedade do que é belo implica uma perda de seu valor.
Pelo contrário, implica um aumento! O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. Era incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a transitoriedade da beleza interferisse na alegria que dela derivamos. Quanto à beleza da Natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, do modo que, em relação à duração de nossas vidas, ela pode de fato ser considerada eterna. A beleza da forma e da face humana desaparece para sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas lhes empresta renovado encanto. Um flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela. Tampouco posso compreender melhor por que a beleza e a perfeição de uma obra de arte ou de uma realização intelectual deveriam perder seu valor devido à sua limitação temporal. Realmente, talvez chegue o dia em que os quadros e estátuas que hoje admiramos venham a ficar reduzidos a pó, ou que nos possa suceder uma raça de homens que venha a não mais compreender as obras de nossos poetas e pensadores, ou talvez até mesmo sobrevenha uma era geológica na qual cesse toda vida animada sobre a Terra; visto, contudo, que o valor de toda essa beleza e perfeição é determinado somente por sua significação para nossa própria vida emocional, não precisa sobreviver a nós, independendo, portanto, da duração absoluta."


(Sigmund Freud)

terça-feira, 11 de agosto de 2009

bibliotecas conjecturadas (2): "inteligência brasileira"


"Trópicos verdes, trópicos marrons, trópicos cinzentos; por vezes convertem-se em planícies desnudas, tornam-se abstratos e simulam as origens dilaceradas do ser. Então, às margens da rodovia retilínea que liga Taubaté a São Paulo, estende-se a General Motors, como uma imensa plantação de automóveis."

"O gesto criador não é jamais histórico, é sempre e tão somente atual."

(Max Bense)


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Ler Max Bense é um ao mesmo tempo cartesiano e catártico momento. Nele nada é acaso e, talvez, nisso esteja sua forma de condensar momentos de relâmpagos na visitação dessa outra margem. Metódica a figura do voo. Sua "Teoria do texto" propõe a leitura residual em relação à linguagem. Em toda realização estética estaria, por isso, a falência do histórico para uma atualização de perceptibilidades. Retirando-se o caráter taxêmico das coisas expressas em palavra, todo artefato semiótico pode clarificar-se em uma identidade (talvez melhor fosse identificação) na qual o próprio nega-se e informa sua materialidade. A paisagem, desse voo, sobre Brasília, é a costumeira plantação de cana, mas, de alguma forma, colhida com o progresso de São Paulo. A atualização da criação engloba portanto uma dualidade importante: deslocamento semântico e condensação estatística. Nesse processo todo elemento purgador da linguagem é constituído por um artesanato metódico do tempo. O conhecimento do fenômeno criativo somente reverbera, nunca é propriamente em seu estado de matéria prévia. Por isso a figura do voo se transmuta. Conduzir-se nesses micro-fragmentos - que lembram muito uma outra conjectura, a Einbahnstraße ["Rua de mão única"], de Walter Benjamin - de Inteligência Brasileira é ver-se na escrita do outro, do estranho, como nosso melancólico tropismo nos simulam, nos indiciam para uma margem do ser, posto ali. Toda a história é transformada em multicor verde, marrom, cinza.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

bibliotecas conjecturadas (1): "prosa del observatorio"



"Esa hora que puede llegar alguna vez fuera de toda hora, agujero en la red del tiempo,
esa manera de estar entre, no por encima o detrás sino entre,
esa hora orificio a la que se accede al socaire de las otras horas, de la incontable vida con sus horas de frente y de lado, su tiempo para cada cosa, sus cosas en el preciso tiempo,
estar en una pieza de hotel o de un andén, estar mirando una vitrina, un perro, acaso
teniéndote en los brazos, amor de siesta o duermevela, entreviendo en esa mancha clara la puerta que se abre a la terraza, en una ráfaga verde la blusa que te quitaste para darme la leve sal que tiembla en tus senos,
y sin aviso, sin innecesarias advertencias de pasaje, en un café del barrio latino o en la última secuencia de una película de Pabst, un arrimo a lo que ya no se ordena como dios manda, acceso entre dos ocupaciones instaladas en el nicho de sus horas, en la colmena día, así o de otra manera (en la ducha, en plena calle, en una sonata, en un telegrama) tocar con algo que no se apoya en los sentidos esa brecha en la sucesión, y tan así, tan resbalando, las anguilas, por ejemplo, la región de los sargazos, las anguilas y también las máquinas de mármol, la noche de Jai Singh bebiendo un flujo de estrellas, los observatorios bajo la luna de Jaipur y de Delhi, la negra cinta de las migraciones, las anguilas en plena calle o en la platea de un teatro, dándose para el que las sigue desde las máquinas de mármol, ese que ya no mira el reloj en la noche de París; tan simplemente anillo de Moebius y de anguila y de máquinas de mármol, esto que fluye ya en una palabra desatinada, desarrimada, que busca por sí misma, que también se pone en marcha desde sargazos de tiempo y semánticas aleatorias, la migración de un verbo: discurso, decurso, las anguilas atlánticas y las palabras anguilas, los relámpagos de mármol de las máquinas de Jai Singh, el que mira los astros y las anguilas, el anillo de Moebius circulando en sí mismo, en el océano, en Jaipur, cumpliéndose otra vez sin otras veces, siendo como lo es el mármol, como lo es la anguila: comprenderás que nada de eso puede decirse desde aceras o sillas o tablados de la ciudad; comprenderás que sólo así, cediéndose anguila o mármol, dejándose anillo, entonces ya no se está entre los sargazos, ..hay decurso, eso pasa: intentarlo, como ellas en la noche atlántica, como el que busca las mensuras estelares, no para saber, no para nada; algo como un golpe de ala, un descorrerse, un quejido de amor y entonces ya, entonces tal vez, entonces por eso sí.
Desde luego inevitable metáfora, anguila o estrella, desde luego perchas de la imagen, desde luego ficción, ergo tranquilidad en bibliotecas y butacas; como quieras, no hay otra manera aquí de ser un sultán de Jaipur, un banco de anguilas, un hombre que levanta la cara hacia lo abierto en la noche pelirroja. Ah, pero no ceder al reclamo de esa inteligencia habituada a otros envites: entrarle a palabras, a saco de vómito de estrellas o de anguilas; que lo dicho sea, la lenta curva de las máquinas de mármol o la cinta negra hirviente nocturna al asalto de los estuarios, y que no sea por solamente dicho, que eso que fluye o converge o busca sea lo que es -y no lo que se dice: perra aristotélica, que lo binario que te afila los colmillos sepa de alguna manera su innecesidad cuando otra esclusa empieza a abrirse en mármol y en peces, cuando Jai Singh con un cristal entre los dedos es ese pescador que extrae de la red, estremecida de dientes y de rabia, una anguila que es una estrella que es una anguila que es una estrella que es una anguila."

(Julio Cortázar)

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Ler Julio Cortázar é estar consigo na imagem de si mesmo. Sua prosa observa ao ser observada. Desde logo vê-se o Moebius infalível, a impossibilidade de um espaço que é dentro e fora ao mesmo tempo. Ou melhor, sendo fora é já o dentro. Não há binarismos na colcha que molda o discurso literário aqui. Desse modo, a imagem da angústia é o que sobrevém. Somos invadidos de nosso real com a imagem da palavra, adentrando o locus do sultão. Há, por isso, fluxos metafóricos no qual a palavra é busca por trás de si e em si - na migração do verbo. O tempo aqui adverte e, com isso, a pulsão de morte sobrevive à imposição da escritura. O poema é buraco - "aquilo que faz furo no real", diz Lacan acerca do simbólico - no tempo, esse fundamento abrangente do amor e do transitoriamente. O dia é marca de palavra no texto e nas fotos de Cortázar. Nesse sentido, há lastros deixados pela imagem nas linhas astrológicas do observatório. Enguias que perpassam as páginas e traços seguidos pelo sol. O olho que vê é visto e lê no tremor erótico daquelas estrelas, palavras - mais que acasos. As imagens são nítidas: tudo teatro montado pelo ritmo. A angústia, portanto, poderia ser definida nessa leitura de Prosa del observatorio, como "nada disso pode ser dito", ou seja, há apenas mármore e enguia, dizendo (que é...) sim às metáforas.

bibliotecas conjecturadas (0): "galáxias"


"tudo isso tem que ver com um suplício chinês que reveza seus quadros em disposições geométricas pode não parecer mas cada palavra pratica um acupuntura com agulhas de prata especialmente afiladas e que penetram um preciso ponto nesse tecido conjuntivo quando se lê não se tem a impressão dessa ordem regendo a subcutânea presença das agulhas mas ela existe e estabelece um sistema simpático de linfas ninfas que se querem perpetuar por um simples contágio de significantes essa torção de significados no instante esse deslizamento de superfícies fônicas que por mínimos desvãos criam figuras de rociado rosicler et volucres veneris mea turba columbae mas é também um suplíci chinês a vítima entre lâminas eróticas que cortam sem cortar tão finas como plumas passando entre rodízios tingguunt gorgoneo de vento o sangue não aflora contido em capilares preso em paredes venosas cuja textura punica rostra lacu não foi afetada ou foi mas se mantém tacta e intangida intangida depois um impulso um sopro um alento um deslocar de coluna de ar e a cabeça rola rompido seu instável equilíbrio por uma exígua navalha de éter mas é você lapso e relapso você quem move os gonzos desse acaso os ábacos desse jogo de avelórios um homem-pena como diria summus juice me poenitet homopluma ele está sentado ratoneiro de ratoletras e não se manca de seu esterco dourado uma sopa de letrias que baba como bulha-à-bessa alhos migalhas bugalhos o argueiro no olho alheio a trave no olho nosso a carocha o caroço o osso o caruncho tudo isso e mais chicória alfavaca alperche alquequenje alius aliter fervem nesse caldo de nostrademo futurando o postrêmio assim quando ele tem cólica de rins vai-se ver e é um cólica de runas uma melancólica de belasletras deletreadas em tritos detritos a ourina pelos ureteres clacificou em calcário de ur e pelos cânulos ouripingou um ouro-pigmento mais venimoso que sulfurgueto de armênio vademecum vaderetro sassafrásio ele esta personagem non grata tendo o livro por menagem se compraz em crisoprásio atende pelo vulgo de bocadouro e pelo invulgo de crisóstomo enquanto excreta crispando-se seus crisólitos crisográficos ninguém se espante porém com tais crocidismos crocodilares quando estiver deveras extremungido e limpo de letras e lastros vai fazer o morto mudo e mouco feito um oco então nostrademo cacofante descriptará os renogramas pétreos cacata carta na frase de catúlio cat-face e se ouvirá o seu testremento acolhido por uma palma de salvas fiat jus era uma vez o entremez do último céu que vem a ser o céu do céu caem esses fios de luz que se prendem entre o visível e o invisível poderia ser hagoromo o manto de penas urdindo-se da luz dançada pelo anjo ou um vento que deixasse congelar suas arestas seus vértices seus vórtices em profilaturas filiformes o âmbito tem qualquer coisa de estelário nas lucilações provocadas por um desgarre súbito de pontos migratórios depois não se vê mais nada porque a vista pára num poro entre visto e invisto onde o visível gesta vai daí a cabeça rompido o equilíbrio descabela e cai"
(Haroldo de Campos)
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Ler Haroldo de Campos é uma atividade inconstante mesmo àqueles que se atenham detalhadamente aos textos. Inconstante porque sempre resvala. Outras trilhas - lastros - são colocados para que o leitor possa desmembrar-se em uma busca pelo sumo do sumo, o suco da alegria (de certa joycosidade). Ler Haroldo, então, é um porvir. Urge certa temporalidade na qual o texto se desloca infinitamente à formas variadas - a poros do visível - para romper-se na "ordem subcutânea" da própria leitura. O porvir de sua leitura, então, é como que solicitada ao equilíbrio caótico da ordem "caosmica" proposta por essas "Galáxias". Superfície de textos, sons, em diálogo. Cada palavra é, por si mesma, um porvir de significações. Assim, cada palavra é já sua temporalidade almejada, lançada às margens de uma outra leitura pressuposta, previamente deixada futurar. Como suplício, o texto consolida-se da pluma (de Shem) até o silêncio das penas (de Zeami). São reflexos do fora que tornam ler uma atividade póstuma e, com isso, sua mutabilidade se transmuta entre o falatório aluciógeno da epifania e a mudez instrospectiva do satori. Haroldo consegue e nos propõe o ambíguo relacionamento com a linguagem. A marca diferencial de sua angústia arqueológica: o grito e o silêncio, fluindo. Torturar, à chinesa, é fazer-se aos poucos deixar cair pela grafia das palavras. Enquanto se escreve, já há a culminação do porvir. No movimento desse corpo, o tempo, o sujeito se interpõe como possuidor de um dos sentidos do discurso. Mas, e ao mesmo tempo, é dado a ele apenas um nível de aporia para começar a vislumbrar esse futuro. Talvez diga-se ecce liber (como propõe Blanchot), mas nessa teoria da linguagem, o que há de fato é uma transluminura de pensa-palavras. Devemos experienciar todos os níveis de língua para poder fazer reluzir a transfiguração de significantes: esse entre letras e aletrias.

derrida: da riba deriva


A forma do escrever. À fonte da escrita, insta-se uma diferença. Aqui, o que é pedir? Almejar? Em termos da língua, o discurso insta-se por si no sujeito. Doutra forma, outra margem. Assim, toda atividade de escrita é, antes, uma inscrição da experiência com a diferença, da diferença. A deriva da palavra é a falange, às margens. Como corpo de guerra, o pedido da escritura é sempre uma multidão espúria de si. Em termos de seu habitar, o poético, a escrita apenas pode mostrar-se como uma bastardia do corpo comum, do uniforme de batalha. É espúrio do sentido comum. Dessa forma, o alheio que habita esse pedido é a diferença que se constitui como si mesmo da experiência da forma, do dizer pela escrita. O ensino de Derrida é aquele de colocar em xeque a língua primeira, arcaica, como possibilidade recenseada. A particularidade do sujeito impõe-nos uma visada de nosso aspecto espúrio na língua, para aí sim dizer a si por si. Sobe-se o rio, nesse pedido, mas mantém-se à deriva toda derrocada da nomeação. Toda diferença é um lance de dados que, não pela imposição do acaso, nos coloca nessa margem frente ao lado alto e, ao mesmo tempo, nos naufraga como não idênticos.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

boneca, espelho, criação



Gilles Deleuze diz, em Qu'est-ce que l'acte de la création: "O sonho daqueles que sonham diz respeito àqueles que não sonham. Por que isso lhes diz respeito? Porque sempre que há o sonho do outro, há perigo. O sonho das pessoas é sempre um sonho devorador, que ameaça nos engolir. Que os outros sonhem é algo perigoso. O sonho é uma terrível vontade de potência. Cada um de nós é mais ou menos vítima do sonho dos outros. Mesmo quando se trata da jovem mais graciosa, ela é uma terrível devoradora, não por sua alma, mas por seus sonhos. Desconfiem do sonho do outro, porque se vocês forem apanhados no sonho do outro, estarão em maus lençóis."

A necessidade do sonho devorando-se. A ação performativa de Deleuze frente às lentes é, sem dúvida, a marca de sua ausência nos espelhos. A chance de a objetiva produzir infinitamente a imagem do pensador é por si mesma uma leitura criativa de Las meninas de Velásquez. De quantas deformidades o devorar do sonho é capaz? Se somos todos vitimizado pelo sonho do outro ao nos ver, assim também estamos como bonecas de Hans Bellmer. Todo ato criativo é antes um ateliê vazio, uma nódoa de possibilidades frente ao ocaso das aparências. Está lá a necessidade, mas sobretudo estão lá as desconfianças e os lençóis derramados. A anatomia do sonho se prescreve como formadora do sujeito que ali concebe a graça de lá está. Minúcias nuas mimeografas. O óleo do dia destecendo os pensamentos. Qual das matérias ainda não pensada? Qual delas não se pode pensar? Ameaçados pelo perigo - pelo salto do tigre que Benjamin tanto fala - o sujeito se constitui na consciência histórica para além de mera reprodução. Deleuze não está reproduzido infinitamente na foto ou no espelho, ele é infinitamente no espelho da foto. Há uma diferença aí. Há o além do mesmo. O que nos deixa devorar, o que nos devora no sonho de nós mesmos é desde nossos corpos. E não há definição. Além de uma metafísica da sublimidade, o necessário - o técnico do belo - se impõe enquanto matéria de linguagem. Daí um arsenal de nostalgias, de imposturas da fala. Articuladas as bonecas são quadros vivos da espécie. O olhar de Deleuze, paramentado, também nos articula, para a história. À menor vau do sentido, o completamos de nossos rastros. Uma escritura que se faz ao pensar, e, dele. O caminho da natureza dos sonhos, na arte, é fazer do devorar assimilação. Fazer da vontade da vítima, marcas maceradas do recriável, no plural espaçamento da matéria modificada. E, se resisto, a necessidade mantém-se imperiosa frente ao acaso e a automatia das experiências conscientes.

escritura (0)



"É fácil a alguém escrever um livro de memórias quando se tem uma terrível memória." (Arthur Schnitzler)



A terrível noite de Fridolin é espelho de toda noite nossa. Os frascos deixados sob as máscaras de carnaval apontam para o livro infantil (de marujos) deixado de lado, mas rastreando-se em nossa memória. É impossível escrever um livro de memórias quando a memória, por si, é terrível. Mesmo a alegria pode se converter em assombro fantasmático. Há sempre já uma falsificação que nos deixa na fantasia. E ainda à máquina... Se não me falha a memória, foi Lacan quem disse que por trás da máscara não há nada. Tentar retirá-la é, como intenta Albertine, tornar o gozo demasiado insuportável. É fácil escrever e não viver com isso.

a flor de creeley

A FLOR

Penso que cultivo tensões

como flores
num bosque onde
ninguém vai.

Cada ferida — perfeita —,
fecha-se numa minúscula imperceptível pétala,
causando dor.

Dor é uma flor como aquela,
como esta,
como aquela,
como esta. (Robert Creeley)

...... ...... ......

Restaurar a dor perdida do objeto, sem dúvida aí está um dos instrumentos da linguagem enquanto participante do campo simbólico. Habito, com isso, esse bosque, minha lalangue, para poder, de uma só foz, desse imperceptível. Ainda há o tendão do dizer, e já nós somos sujeitos da enunciação. Sujeitos ao dito, dessa fala frente ao calar (de si para si) do outro. O que existe entre o esta e o aquela? Converte-se de par em par em anedota. O dia em que a raposa continua enterrando sua vovó sob o azevinho. Assim, a fantasia da interpretação: um restauro do sonho, do tempo transmutado. No fantasiar, o poeta se inscreve, puro ritmo, na dor sentida, bem.
Em outro sintoma, o que poderia ser um pensar de tendões? Sem dúvida, o significante permanece aqui tenso, entre um paradoxo e a ambiguidade. Fornece-nos o bosque, atracado. Mas não há laço, apenas a possível invasão do outro. Que objeto é esse, perdido, na falha, deixado para trás? O inescrutável da teoria e mais a marca do desejo, abandonado. Ferir é deixar que o corpo toque-se no real. Lacan: "a linguagem come o real" (Sem. XXIII). E, ao comer, colocam-se os furos todos do sentido, as manchas deixadas pelo sujeito naquela indizível - e, por isso, perfeita - dor de pétala. Não são petas o que os poetas cantam, antes são lãs deixadas, aos nardos do sentido.

duchamp e a pureza da diferença (ou da intencionalidade anversa)



Octavio Paz, em Marcel Duchamp ou o castelo da pureza, analisa a intrinseca relação entre as obras desse provocador-criativo e os processos da poesia moderna a partir de Mallarmé (sobretudo no tocante ao Un coup de dés). Nesse ponto o espectador é responsável por deturbar a pureza, imiscuindo-se em sua diferença, em sua profana-ação. Há, que se pensar, no mínimo, no que se constrói de declarável entre o nada e a produção da realidade.


Diz Octavio Paz: "Umas das ideias mais inquietantes de Duchamp se condensa numa frase muito citada: 'o espectador faz o quadro'. Expressa com tal insolente concisão, parece negar a existência das obras e proclamar um niilismo ingênuo. Em um breve texto publicado em 1957 ('O Processo Criador'), esclarece um pouco a sua ideia. Segundo essa declaração, o artista nunca tem plena consciência de sua obra: entre as suas intenções e sua realização, entre o que quer dizer e o que a obra diz, há uma diferença. Essa 'diferença' é realmente a obra. Pois bem, o espectador não julga o quadro pela intenções de seu autor, mas pelo que realmente vê; esta visão nunca é objetiva: o espectador interpreta e 'refina' o que vê. A diferença se transforma em outra diferença, a obra em outra obra. A meu modo de ver a explicação de Duchamp não dá conta do ato ou processo criador em toda a sua integridade. É verdade que o espectador cria uma obra distinta da imaginada pelo artista, mas entre uma e outra, entre o que o artista quis fazer e o que o espectador acredita ver, há uma realidade: a obra. (...) A obra faz o olho que a contempla - ou, ao menos, é um ponto de partida: desde ela e por ela o espectador inventa outra obra."


Parece-me que Octavio Paz intenta conduzir-nos a uma crença no artista como prévio à obra. Mas o que de fato existe no sujeito antes da obra? Talvez o espectador de outras obras, criando obras. O silêncio desse processo talvez seja o mistério poético das desventuras modernas. Qualquer poeta pode experienciar essa distância do processo criativo à intencionalidade ou à recepção - e obvimento e velho Octavio também o pôde. O interessante talvez seja conduzir-se nesse aparato de diferenças, nessa quebra de integralidade (que lembra uma estética totalizante e tomística, em termos de sua integritas). Que haja pureza no nada da poésie pure de Estefânio Mallarmé, tenho dúvidas. Apenas o silêncio da página branca não comprova nada acerca dos barulhos bulhentos (para citar o Rosa) que rodeiam todo diálogo possível entre a pureza rítmica da fonte do poema e sua vacuidade. O Grande Vidro de Duchamp, assim como o acaso mallarmaico, invertem os pólos da criatividade. Sem a leitura aquilo tudo é nada, ocaso. Na oclusão somos criados à criação, como construção. O que cada um aqui vai completar essas obras? Duchamp, em princípio, preferiu uma partida de xadrez com Eva nua.

dementia praecox



O sujeito fora de si produz uma linguagem do nunca-si. Essa nunca-linguagem é naquilo em que sua precocidade só pode ser atingida em estado latente de liame social. A fuga destitui seu outro como outro, mas ainda este vive no tempo, no rastro do tempo. No homem da lei, como Schreber, há um sempre diante da lei, do nome inscrito no início. Há, portanto, um início. Essa marca o faz liame. Na psicose, além dos nervos, o próprio sujeito é atingido, tornando-se a fuinha da dança social. Lucia Joyce permanece dançando, desenhando seu corpo em sua angústia. A desordem do sujeito o exclui do ser contato com o Dasein? Toda experiência que passe pela linguagem é, por si mesma, uma ilha de suas próprias leis. Às vezes se alcança o outro, pelo mar.