terça-feira, 1 de setembro de 2009

bibliotecas conjecturadas (7): "Íon"


"É o que me disponho a fazer, Ião, para explicar-te o que me parece ser a causa do que dizes. O dom de falares com facilidade de Homero, conforme concluí há pouco, nao é efeito da arte, porém resulta de uma força divina que te agita, semelhante à força da pedra que Eurípides denomia magnética e que é mais conhecida como pedra de Héracles. Porque essa pedra não somente tem o poder de atrair anéis de ferro, como comunica a todos eles a mesma propriedade, deixando-os capazes de atuar como a própria pedra e de atrair outros anéis, a ponto de, por vezes, formar-se uma cadeia longa de anéis e de pedaços de ferro, pendentes uns dos outros; e todos tiram essa força da pedra. Do mesmo modo, as Musas deixam os homens inspirados, comunicando-se o entusiasmo destes a outras pessoas, que passam a formar cadeias de inspirados. Porque os verdadeiros poetas, os criadores das antigas epopeias, não compuseram seus belos poemas como técnicos, porém como inspirados e possuídos, o mesmo acontecendo com os bons poetas líricos. Iguais nesse particular aos coribantes, que só dançam quando estão fora do juízo, do mesmo modo os poetas líricos ficam fora de si próprios ao comporem seus poemas; quando saturados de harmonia e de ritmo, mostram-se tomados de furor igual ao das bacantes, que só no estado de embriaguez característica colhem dos rios leite e mel, deixando de fazê-lo quando recuperam o juízo. O mesmo se dá com a alma do poeta lírico, como eles próprios relatam. Dizem-nos os poetas, justamente, que é de certas fontes de mel dos jardins e vergéis das Musas que eles nos trazem suas canções, tal como abelas, adejando daqui para ali do mesmo modo que elas. E só dizem a verdade. Porque o poeta é um ser alado e sagrado, todo leveza, e somente capaz de compor quando saturado do deus e fora do juízo, e no ponto, até, em que perde de todo o senso."

(Platão)

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Ler Platão é ser incitado à revolta. Em um primeiro plano, tudo o que diz ironicamente Sócrates pode ser considerado como verdade filosófica, mas, sendo irônico o discurso, decorre daí todo o desmoronamento do saber aquém do poético. Coloca-nos na revolta por isso, estamos fora também - como o rapsodo Íon - do uso diário com a linguagem. Ponho-me em crise com a linguagem, pois não mais sei se é irônico o dizer do homem - uma busca intransitiva pela negação -, se é divino falar no homem - e assim, seríamos transporte, metáfora e analogia de uma outra metafísica -, ou ainda se é humana a afirmação do poético. Platão nos coloca, em dialogia, o problema de onde habita a identidade imantada do homem no poético. Dessa forma, toda leitura de diálogo deve conceber que há um deslocamento que atinge o ouvinte e o produtor. Nesse deslocar-se os sentidos são expostos à prova e colocados em estado de perda, necessária, à ação do discurso em si, no cerne do convívio. Desloca-se para trazer o intermédio da habitação, fora da técnica, dentro da técnica. Assim, Platão revela a revolta do sentido e do sentimento, justo naquilo que o discurso poemático de seus diálogos pode, ele também, nos conduzir a uma perda do juízo, pela imaginação e ficcionalidade.

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