segunda-feira, 10 de agosto de 2009

bibliotecas conjecturadas (0): "galáxias"


"tudo isso tem que ver com um suplício chinês que reveza seus quadros em disposições geométricas pode não parecer mas cada palavra pratica um acupuntura com agulhas de prata especialmente afiladas e que penetram um preciso ponto nesse tecido conjuntivo quando se lê não se tem a impressão dessa ordem regendo a subcutânea presença das agulhas mas ela existe e estabelece um sistema simpático de linfas ninfas que se querem perpetuar por um simples contágio de significantes essa torção de significados no instante esse deslizamento de superfícies fônicas que por mínimos desvãos criam figuras de rociado rosicler et volucres veneris mea turba columbae mas é também um suplíci chinês a vítima entre lâminas eróticas que cortam sem cortar tão finas como plumas passando entre rodízios tingguunt gorgoneo de vento o sangue não aflora contido em capilares preso em paredes venosas cuja textura punica rostra lacu não foi afetada ou foi mas se mantém tacta e intangida intangida depois um impulso um sopro um alento um deslocar de coluna de ar e a cabeça rola rompido seu instável equilíbrio por uma exígua navalha de éter mas é você lapso e relapso você quem move os gonzos desse acaso os ábacos desse jogo de avelórios um homem-pena como diria summus juice me poenitet homopluma ele está sentado ratoneiro de ratoletras e não se manca de seu esterco dourado uma sopa de letrias que baba como bulha-à-bessa alhos migalhas bugalhos o argueiro no olho alheio a trave no olho nosso a carocha o caroço o osso o caruncho tudo isso e mais chicória alfavaca alperche alquequenje alius aliter fervem nesse caldo de nostrademo futurando o postrêmio assim quando ele tem cólica de rins vai-se ver e é um cólica de runas uma melancólica de belasletras deletreadas em tritos detritos a ourina pelos ureteres clacificou em calcário de ur e pelos cânulos ouripingou um ouro-pigmento mais venimoso que sulfurgueto de armênio vademecum vaderetro sassafrásio ele esta personagem non grata tendo o livro por menagem se compraz em crisoprásio atende pelo vulgo de bocadouro e pelo invulgo de crisóstomo enquanto excreta crispando-se seus crisólitos crisográficos ninguém se espante porém com tais crocidismos crocodilares quando estiver deveras extremungido e limpo de letras e lastros vai fazer o morto mudo e mouco feito um oco então nostrademo cacofante descriptará os renogramas pétreos cacata carta na frase de catúlio cat-face e se ouvirá o seu testremento acolhido por uma palma de salvas fiat jus era uma vez o entremez do último céu que vem a ser o céu do céu caem esses fios de luz que se prendem entre o visível e o invisível poderia ser hagoromo o manto de penas urdindo-se da luz dançada pelo anjo ou um vento que deixasse congelar suas arestas seus vértices seus vórtices em profilaturas filiformes o âmbito tem qualquer coisa de estelário nas lucilações provocadas por um desgarre súbito de pontos migratórios depois não se vê mais nada porque a vista pára num poro entre visto e invisto onde o visível gesta vai daí a cabeça rompido o equilíbrio descabela e cai"
(Haroldo de Campos)
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Ler Haroldo de Campos é uma atividade inconstante mesmo àqueles que se atenham detalhadamente aos textos. Inconstante porque sempre resvala. Outras trilhas - lastros - são colocados para que o leitor possa desmembrar-se em uma busca pelo sumo do sumo, o suco da alegria (de certa joycosidade). Ler Haroldo, então, é um porvir. Urge certa temporalidade na qual o texto se desloca infinitamente à formas variadas - a poros do visível - para romper-se na "ordem subcutânea" da própria leitura. O porvir de sua leitura, então, é como que solicitada ao equilíbrio caótico da ordem "caosmica" proposta por essas "Galáxias". Superfície de textos, sons, em diálogo. Cada palavra é, por si mesma, um porvir de significações. Assim, cada palavra é já sua temporalidade almejada, lançada às margens de uma outra leitura pressuposta, previamente deixada futurar. Como suplício, o texto consolida-se da pluma (de Shem) até o silêncio das penas (de Zeami). São reflexos do fora que tornam ler uma atividade póstuma e, com isso, sua mutabilidade se transmuta entre o falatório aluciógeno da epifania e a mudez instrospectiva do satori. Haroldo consegue e nos propõe o ambíguo relacionamento com a linguagem. A marca diferencial de sua angústia arqueológica: o grito e o silêncio, fluindo. Torturar, à chinesa, é fazer-se aos poucos deixar cair pela grafia das palavras. Enquanto se escreve, já há a culminação do porvir. No movimento desse corpo, o tempo, o sujeito se interpõe como possuidor de um dos sentidos do discurso. Mas, e ao mesmo tempo, é dado a ele apenas um nível de aporia para começar a vislumbrar esse futuro. Talvez diga-se ecce liber (como propõe Blanchot), mas nessa teoria da linguagem, o que há de fato é uma transluminura de pensa-palavras. Devemos experienciar todos os níveis de língua para poder fazer reluzir a transfiguração de significantes: esse entre letras e aletrias.

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