sexta-feira, 21 de agosto de 2009

bibliotecas conjecturadas (5): "Hamlet"


"Que camponês canalha e baixo eu sou!
Não é monstruoso que esse ator consiga
Em fantasia, em sonho de paixão,
Forçar sua alma a assim obedecer-lhe
A ponto de seu rosto ficar pálido,
Ter lágrimas nos olhos, o ar desfeito,
A voz cortada, e todo o desempenho
E as expressões de acordo com o papel?
E tudo isso por nada! Só por Hécuba!
Que lhe interessa Hécuba, ou ele a ela,
Para que chore assim? E que faria
Se tivesse os motivos de paixão
Que eu tenho? Inundaria com seu pranto
O palco, e rasgaria com palavras
Horríveis os ouvidos da assistência;
Poria louco o réu, medroso o livre,
Conturbado o ignorante, e estuporados
Os sentidos da vista e dos ouvidos...
Mas eu, canalha inerte, alma de lodo,
Arrasto-me, alquebrado, um João-de-Sonho,
Nada digo, porquanto não me enfronho
Em minha causa; causa que é de um rei
A cujo patrimônio e à própria vida
Foi imposta uma trágica derrota.
Sou acaso um covarde? Quem me chama
De vilão? Quem me parte o crânio e arranca
As barbas, pra em rosto m'as lançar?
Quem me torce o nariz? Quem me desmente
E jura que há de pôr-me pela goela,
Atingindo os pulmões, o que é mentira?
Quem me faz isso? Ai, bem o mereço:
Não o devia ser, mas sou um fraco;
Falta-me o fel que amarga as opressões,
Senão, eu já teria alimentado
Os milhafres do céu co'os restos podres
Desse vilão lascivo ensangüentado!
Vilão cruel, traidor incestuoso!
Oh, vingança!
Ah, que jumento eu sou! Isso é decente,
Que eu, filho de um pai assassinado,
Chamado a agir por anjos e demônios,
Qual meretriz sacie com palavras
Meu coração, co'as pragas das rameiras
E das escravas!
Arre, que asco! Mas ergue-te, meu cérebro:
Ouvi dizer que quando os malfeitores
Assistem a uma peça que os imita,
Sentem na alma a perfeição da cena
E confessam de súbito os seus erros.
Pois o crime de morte, sem ter língua,
Falará com o milagre de outra voz.
Esses atores, diante de meu tio,
Repetirão a morte de meu pai;
Vou vigiar-lhe o olhar, sondá-lo ao vivo;
Se trastejar, eu sei o que farei.
O fantasma talvez seja um demônio,
Pois o demônio assume aspectos vários
E sabe seduzir; ele aproveita
Esta melancolia e esta fraqueza,
Já que domina espíritos assim,
Para levar-me à danação. Preciso
Encontrar provas menos duvidosas.
É com a peça que penetrarei
O segredo mais íntimo do rei."

(William Shakespeare)

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Ler Shakespeare é participar do íntimo tenso na conversa. Assim, o lodo convertido, quintessência de nada. Vai-se ao teatro, moldam-se as máscaras tesas. Um alívio de estar apenas lendo e poder fingir que não afeta. Saciando, essa puta triste, de palavras, o corpo se deixa nostálgico ao fado preso do desejo impossível, da falta original. O que me imita, de súbito, nessa morada de tempos? Ser Hamlet ou Falstaff ou Ofélia. Às vezes todos de uma só vez tentando desvendar o que é essa matéria do sonho que me marca, assujeita. Apenas olhar a causa, fazer pintar aquilo que torna e faz-acontecer. Shakespeare se vinga de cada desatento, molhando nossos olhos com o sangue das mãos dos Macbeths. Silencio, lendo-o.

Um comentário:

olimpia disse...

não sei se é cisma minha, mas de repente passei a ver tudo vermelho...