sexta-feira, 7 de agosto de 2009

duchamp e a pureza da diferença (ou da intencionalidade anversa)



Octavio Paz, em Marcel Duchamp ou o castelo da pureza, analisa a intrinseca relação entre as obras desse provocador-criativo e os processos da poesia moderna a partir de Mallarmé (sobretudo no tocante ao Un coup de dés). Nesse ponto o espectador é responsável por deturbar a pureza, imiscuindo-se em sua diferença, em sua profana-ação. Há, que se pensar, no mínimo, no que se constrói de declarável entre o nada e a produção da realidade.


Diz Octavio Paz: "Umas das ideias mais inquietantes de Duchamp se condensa numa frase muito citada: 'o espectador faz o quadro'. Expressa com tal insolente concisão, parece negar a existência das obras e proclamar um niilismo ingênuo. Em um breve texto publicado em 1957 ('O Processo Criador'), esclarece um pouco a sua ideia. Segundo essa declaração, o artista nunca tem plena consciência de sua obra: entre as suas intenções e sua realização, entre o que quer dizer e o que a obra diz, há uma diferença. Essa 'diferença' é realmente a obra. Pois bem, o espectador não julga o quadro pela intenções de seu autor, mas pelo que realmente vê; esta visão nunca é objetiva: o espectador interpreta e 'refina' o que vê. A diferença se transforma em outra diferença, a obra em outra obra. A meu modo de ver a explicação de Duchamp não dá conta do ato ou processo criador em toda a sua integridade. É verdade que o espectador cria uma obra distinta da imaginada pelo artista, mas entre uma e outra, entre o que o artista quis fazer e o que o espectador acredita ver, há uma realidade: a obra. (...) A obra faz o olho que a contempla - ou, ao menos, é um ponto de partida: desde ela e por ela o espectador inventa outra obra."


Parece-me que Octavio Paz intenta conduzir-nos a uma crença no artista como prévio à obra. Mas o que de fato existe no sujeito antes da obra? Talvez o espectador de outras obras, criando obras. O silêncio desse processo talvez seja o mistério poético das desventuras modernas. Qualquer poeta pode experienciar essa distância do processo criativo à intencionalidade ou à recepção - e obvimento e velho Octavio também o pôde. O interessante talvez seja conduzir-se nesse aparato de diferenças, nessa quebra de integralidade (que lembra uma estética totalizante e tomística, em termos de sua integritas). Que haja pureza no nada da poésie pure de Estefânio Mallarmé, tenho dúvidas. Apenas o silêncio da página branca não comprova nada acerca dos barulhos bulhentos (para citar o Rosa) que rodeiam todo diálogo possível entre a pureza rítmica da fonte do poema e sua vacuidade. O Grande Vidro de Duchamp, assim como o acaso mallarmaico, invertem os pólos da criatividade. Sem a leitura aquilo tudo é nada, ocaso. Na oclusão somos criados à criação, como construção. O que cada um aqui vai completar essas obras? Duchamp, em princípio, preferiu uma partida de xadrez com Eva nua.

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