sexta-feira, 7 de agosto de 2009

boneca, espelho, criação



Gilles Deleuze diz, em Qu'est-ce que l'acte de la création: "O sonho daqueles que sonham diz respeito àqueles que não sonham. Por que isso lhes diz respeito? Porque sempre que há o sonho do outro, há perigo. O sonho das pessoas é sempre um sonho devorador, que ameaça nos engolir. Que os outros sonhem é algo perigoso. O sonho é uma terrível vontade de potência. Cada um de nós é mais ou menos vítima do sonho dos outros. Mesmo quando se trata da jovem mais graciosa, ela é uma terrível devoradora, não por sua alma, mas por seus sonhos. Desconfiem do sonho do outro, porque se vocês forem apanhados no sonho do outro, estarão em maus lençóis."

A necessidade do sonho devorando-se. A ação performativa de Deleuze frente às lentes é, sem dúvida, a marca de sua ausência nos espelhos. A chance de a objetiva produzir infinitamente a imagem do pensador é por si mesma uma leitura criativa de Las meninas de Velásquez. De quantas deformidades o devorar do sonho é capaz? Se somos todos vitimizado pelo sonho do outro ao nos ver, assim também estamos como bonecas de Hans Bellmer. Todo ato criativo é antes um ateliê vazio, uma nódoa de possibilidades frente ao ocaso das aparências. Está lá a necessidade, mas sobretudo estão lá as desconfianças e os lençóis derramados. A anatomia do sonho se prescreve como formadora do sujeito que ali concebe a graça de lá está. Minúcias nuas mimeografas. O óleo do dia destecendo os pensamentos. Qual das matérias ainda não pensada? Qual delas não se pode pensar? Ameaçados pelo perigo - pelo salto do tigre que Benjamin tanto fala - o sujeito se constitui na consciência histórica para além de mera reprodução. Deleuze não está reproduzido infinitamente na foto ou no espelho, ele é infinitamente no espelho da foto. Há uma diferença aí. Há o além do mesmo. O que nos deixa devorar, o que nos devora no sonho de nós mesmos é desde nossos corpos. E não há definição. Além de uma metafísica da sublimidade, o necessário - o técnico do belo - se impõe enquanto matéria de linguagem. Daí um arsenal de nostalgias, de imposturas da fala. Articuladas as bonecas são quadros vivos da espécie. O olhar de Deleuze, paramentado, também nos articula, para a história. À menor vau do sentido, o completamos de nossos rastros. Uma escritura que se faz ao pensar, e, dele. O caminho da natureza dos sonhos, na arte, é fazer do devorar assimilação. Fazer da vontade da vítima, marcas maceradas do recriável, no plural espaçamento da matéria modificada. E, se resisto, a necessidade mantém-se imperiosa frente ao acaso e a automatia das experiências conscientes.

Nenhum comentário: